O Velho Alcindo
Alcindo é um sujeito pacato, que vive
nas cercanias de Madureira e nunca teve muito do que se preocupar, a não ser o
time que torce. Assim como todos os demais de sua tribo futebolística, ele
optou pelo Botafogo por puro delírio de elegância. E digo optou, porque nunca
foi forçado a tal. O único ser teimoso que também acreditava no impossível
dentro de sua família era seu falecido avô. Problemas na escola e em jantares
de família sempre fizeram parte de seu cotidiano. Mas hoje, no auge dos seus 77
anos e já cansado de contar os privilégios do absurdo, ele não discute mais com
qualquer um. Assim como o time que escolheu torcer, sua discussão se limita
para poucas e boas mentes.
Na última sexta-feira,
após uma semana exaustiva e pouco produtiva, pois havia perdido todas as
partidas de xadrez disputadas na praça, resolveu que deveria ir à Volta Redonda
assistir à final. Vale lembrar que nenhum botafoguense decidi ir a qualquer
jogo; o botafoguense é convocado pelos mesmos mistérios maravilhosos que
enlouqueceram Nietzsche. E dessa forma, qualquer obstáculo não seria capaz de
remediar tal loucura. O primeiro desafio, aquele que faria até Hércules
desistir de trabalhar para tirar folga, entrou em seu caminho: os ingressos se
esgotaram.
Mas Alcindo,
dentro de sua magnitude ultrajante proveniente de anos torcendo pelo time que
tanto lhe ensinou sobre a vida, sabia que estaria infiltrado no Raulino de
Oliveira domingo. Longe de ser um cara arrogante ou violento, ele não tardaria
a matar algum coitado para conseguir seu ingresso. Idosos não podem ser presos,
mas podem e devem assistir aos jogos de futebol. E Seu Alcindo não é o tipo de
velho que entra de graça em estádios. Costuma dizer que isso é coisa para
sedentários.
Sábado de
manhã, seu neto mais chato o ligou e avisou sobre a venda de ingressos
remanescentes dos sócios. Perguntado pelo jovem se poderia o acompanhar ao
jogo, Alcindo foi sucinto:
-Acompanhar
eu não acompanho. Vá procurar alguma menina para ir com você. Mas não se
esqueça de comprar o meu ingresso! – e pôs o telefone no gancho com um sorriso
colado pela sobra de Corega.
Almoçou
com suas pessoas favoritas: sua espoca, Garrincha, Che Guevara, Louis Armstrong
e Dom Quixote; todos presentes por fotografias, menos o último que estava parado
como uma estátua na cadeira à sua esquerda. Já cansado de tanto conversar e com
a barriga cheia, decidiu que era hora de começar a concentração para o jogo
decisivo. Escovou a dentadura e foi tirar vantagem na praça. Como qualquer sábado
ensolarado em Madureira, todos os idosos estavam jogando dama. Diziam que
xadrez era muito sério para finais de semana. Aproximou-se do Seu Juarez, e
disparou:
-Estou
indo para Volta Redonda assistir a decisão... – e Juarez, um idoso abusado e dono
de uma barriga latifundiária, perguntou:
-E você
realmente acha que seu time ganhará do meu tricolor?
E aquela
singela pergunta rejuvenesceu Alcindo 45 anos, e sua bengala deixou servir como
apoio para virar uma arma medieval. Ninguém sabe onde Juarez foi atingido, só é
sabido que este nunca mais pisou na praça. Passados 50 minutos, Alcindo se
explicou aos remanescentes:
-Não
fiquei com raiva dele. Fiquei com raiva de mim, pois esqueci que não se deve
falar com tricolores em semana de jogo – e outro amigo, um trovador, continuou
a conversa:
-Mas então
Alcindo, quem leva o caneco?
-Apostaria
no América, mas não apostaria no Botafogo. Nunca vi o meu time ganhar quando
estava confiante. O meu time não é previsível como os demais, por isso a graça
de torcer por ele. Eu gosto de ser surpreendido no final de um filme, enquanto
vocês preferem continuar assistindo Xuxa – e se retirou. Chegou em casa e foi
dormir. Sabia que o dia seguinte seria longo.
Acordou ás
5 da manhã, pois perdera o sono para a ansiedade. Às 11, seu neto ligou
avisando que passaria meio-dia para buscá-lo. Tomou um banho, almoçou com seus
amigos favoritos e foi esperar na portaria. Quando seu neto estacionou o carro
na frente de seu prédio, ficou surpreso ao ver uma linda moça no banco de
passageiro. Não era sempre que o jovem escutava seus conselhos, e quando
escutava, executava-as de forma pouco virtuosas. Mas dessa vez o acerto foi
preciso. Além de linda, também era botafoguense.
Chegando
ao estádio, deixou o casal surpreso quando se despediu. Ambos acharam um
absurdo um senhor de 77 anos assistir ao jogo sozinho, mas Alcindo não estava
sozinho. Sabia que outros 8 mil botafoguenses estariam ao seu lado. Antes de o
time entra em campo, ele se levantou e não conseguiu assistir o primeiro tempo
sentado. E toda sua ousadia foi posta pra fora quando viu Marcelo Mattos tomar
uma porrada em plena área, próxima a torcida alvinegra. E como qualquer bom
torcedor, começou a brigar com um desconhecido quando ouviu:
-Expulsa o
Thiago Neves.
Alcindo,
como um garoto de 22 anos, caminhou até o profanador e disse:
-Expulsa é
o cacete. Espanca, porra! – e o garoto acatou o aviso e mudou o linguajar.
3 minutos
depois assistiu Bolívar, o zagueiro de nome mais bonito da história do
Botafogo, dar um encontrão no camisa 11 adversário, levantar a cabeça, encarar
o mau-caráter e mostrar que ninguém estava ali para brincar. Automaticamente, Alcindo
lembrou da história que seu avô lhe contava sobre o Botafogo e América de 1911,
e sentiu que aquela equipe gloriosa poderia voltar a ser também “O Clube de
Capa e Espada” de outrora. Um time de garotos e veteranos de verdade, onde
irmãos mais velhos defendem os mais novos e onde ninguém aceitaria ofensas
gratuitas. Lágrimas nunca haviam lhe feito companhia até aquele dia. Acreditou
até que seu avô ficaria orgulhoso com a postura do nosso atleta.
Mais do
que nunca, o Botafogo merecia a vitória e sempre que a torcida começava a
cantar o hino, Alcindo apenas gritava no verso: “Não podes perder, Perder pra
ninguém!”
E após o
primeiro gol legítimo ser furtado na mais leviana cara de pau, o time com
feições literárias marcou. O Faraó Turco não tardou a satisfazer seus súditos.
Perdeu a primeira batalha, mas jamais entregaria a guerra. Seu verdadeiro
oponente, o bandeirinha, nada pode fazer a não ser correr para o meio de campo.
Subitamente, toda a raiva de meses passou, e Rafael Marques se tornou herói. No
domingo, qualquer um viraria herói; qualquer um trajado de preto e branco. E as
coisas conspirarão para tal: mesmo o mais azarado dos humanos conseguiu marcar
seu gol.
A partir
do intervalo, Alcindo sentiu uma confiança inédita. Algo lhe dizia que nada
interferiria no resultado e conseguiu, pela primeira vez na vida, assistir
parte de uma decisão sentado. Viu Edinho tomar um drible com sotaque holandês e
ser substituído 5 minutos depois, com cabeça baixa, ainda à procura da bola. E percebeu
que até os adversários estavam admirando o campeão, mesmo que de forma pouco
convencional.
Viu também
o juiz de pouco juízo anular mais um gol alvinegro. Dória Gray merecia aquele
gol, e o Holandês sabia disso. Caminhou até a marca do pênalti, tirou a bola
das mãos de Lodeiro, estufou o peito, mirou no travessão e entortou o poste suspenso.
Ele sabia que aquele gol deveria continuar com a assinatura do jovem. Seedorf
aceitou o papel de Lord Henry que ainda faltava ser preenchida.
Mas Alcindo, botafoguense calejado,
só esbravejou “É campeão!” no apito final. E gritou “É campeão!” por ele, pelo
neto, pela esposa, por Garrincha, por Dom Quixote, por Abelardo De Lamare, mas
principalmente por seu avô.
Sabia que era apenas mais um título
do Botafogo que cientistas do mundo todo tentariam explicar em vão. Alcindo sabe,
acima de qualquer coisa, que o Botafogo não é para ser explicado; É para ser
admirado!
Vida longa, Seu Alcindo!