terça-feira, 18 de junho de 2013



Eu tive um pesadelo essa noite...


Eu tive um pesadelo essa noite em que jovens ocupavam as ruas. Eu tive um pesadelo essa noite em que a cidade parava para aplaudir a juventude e toda sua força. Eu tive um pesadelo essa noite em que todas idéias se faziam válidas, menos as terceirizadas por partidos. Eu tive um pesadelo essa noite...
Os jovens não tinham medo. E acredite, até mesmo o calvo grisalho de bengala demonstrar uma juventude invejável aos olhos passageiros. Eles não saíram de casa para ir à balada ou ir brincar de amarelinha. O parque de diversão deles, agora, era a cidade. Eu tive um pesadelo essa noite que a cidade era deles.
Anarco-punks, comunistas, baitolas e batutinhas, todos se fizeram presente. Se a união faz a força, foi exatamente na singularidade de cada um que me assustei e quase despertei. Não era para eles estarem do mesmo lado. Eles nunca estiveram do mesmo lado. E o pior, todos estavam confiantes e sorridentes. Seus dentes eram visíveis mesmo encobertos por panos. Sim, aqueles eram os caras-tampadas. Eu tive um pesadelo essa noite...
Seus rostos tampados não eram por vergonha. Talvez fosse também por proteção. Mas era principalmente por ideologia. Eles eram eles, sem nome, RG, CPF ou qualquer burocracia que lhes perturbe. Eles mostraram que tinham coragem e ousadia, e essa sempre foi a ideologia que mais temi. Eles eram jovens, deveriam estar bebendo ao som de sertanejo. A rua ocupada por caras-tampadas? Isso nunca poderia ser controlado. Eu tive um pesadelo essa noite...
Os partidos políticos sofreram uma espécie nova de coerção-social. Suas bandeiras não representavam mais os jovens. Como isso foi acontecer? Eles têm de se organizar em grupo. Eu prezo o diálogo entre os grupos. Mas na cidade não havia mais grupos. Havia um grupo: o povo. E qual foi a reação dos partidos? Abaixarem suas bandeiras e permanecerem civis. Eles nunca se sentiram tão parte do povo quanto naquele dia. Eu tive um pesadelo essa noite...
O povo se dividiu após o primeiro ato. Todos que prezavam a paz e o movimento pacífico foram para suas casas ou para os bares aos arredores, felizes pelo belo desempenho que tiveram. Mas o problema era outro. Agora eles tinham escolha, pois parte do movimento seguiu. E os remanescentes não queriam mais brincar. Desta vez, quem não queria diálogo eram eles. Eles e suas caras tampadas. E a assembléia legislativa ficou pequena, a polícia foi expulsa, o tempo parou e a fumaça sumiu. Mas o que eles queriam? O fim do voto parlamentar secreto? O fim dos salários que os parlamentares tanto suavam para conseguir? Ou apenas mostrar sua força? Na dúvida, prefiro afirmar que eles queriam tudo isso. Eu também já fui jovem e também queria o mundo naquela idade. Mas eles? Eles querem acabar com o meu mundo! E eles me aterrorizaram. Eles eram muitos. Eles eram fortes. Eles eram contra o estado de direito. Eles eram contra o estado. Eles eram contra todos os direitos que nós conquistamos. Eles queriam começar tudo de novo. Eu tive um pesadelo essa noite...
E os bombeiros, ao passarem, eram homenageados pelos jovens. Ao som de aplausos e congratulações, eles expunham suas fases para fora dos caminhões, esbanjando largos sorrisos, e apertavam as mãos de todos os manifestantes. Eles também eram manifestantes. Eles também tinham estado em confronto comigo recentemente. Eles também eram parte daquilo. E ao saltarem de seus veículos e correrem em direção os feridos, os demais manifestantes faziam cordões humanos para facilitar o trabalho. Porque? Eles não estavam ali para ajudar alguém. Eu achava. Precisava começar justamente pelos bombeiros? Eu nunca tinha visto um funcionário público ser tão prestigiado quanto naquele dia. Eu tive um pesadelo essa noite...
A estátua de Tiradentes trajado de Jesus Cristo explodiu e o povo celebrou. A assembléia legislativa só seria reaberta após o fim dos privilégios de seus servidores e do voto parlamentar secreto. O povo estava dentro dela e não haveria bomba que os tirassem de lá. Eles não queriam a democracia representativa. Eles se auto-representavam. Mas eles não podiam fazer isso. Eles eram muitos. Eles eram jovens. Eu tive um pesadelo essa noite...
Nenhum policial podia mais andar fardados nas ruas, antes que de seu oficio fosse tirado o serviço militar. Nenhum ônibus público podia mais circular às ruas até que uma investigação culpasse a máfia dos transportes pelo descaso do serviço. O pescoço dos mafiosos nunca valeu tanto. Não havia um monumento em toda a cidade que homenageasse políticos. Nomes de ruas foram trocados. Corruptos sofriam perseguição pela cidade. Obras públicas que usávamos para lavar dinheiro foram ocupadas. O salário mínimo tinha chegado à valores astronômicos. Professores eram os profissionais mais bem pagos, junto com os médicos. E os advogados aprenderam a se contentar com o mínimo. Quem me defenderia? Eu tive um pesadelo essa noite...
Eles perderam o medo e eu não sabia o que era isso até então. Onde estavam todos os aparatos de controle populacional que demoramos anos montando? Não funcionavam mais. Eles inverteram o jogo. O único controle exercido agora era o político. Eu deveria ter sido engenheiro. Ser político não me trazia mais nenhuma vantagem. Eu tive um pesadelo essa noite.

Eduardo Cabral

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